RESUMO
No Brasil, a produção de bioinsumos para uso próprio é legal, garantida por estrutura normativa consolidada, e constitui o maior programa de redução de uso de agrotóxicos na agricultura já realizado no País.
Nota técnica ABBINS 03/2023
A expressão direito romano compreende o conjunto de regras que vigoraram no Império Romano durante cerca de 12 séculos, desde a fundação da cidade, em 753 a.C., até a morte do imperador Justiniano, em 565 depois de Cristo.
Desde este período, o abuso do direito era vedado em várias situações, sempre com o objetivo de impedir que atos considerados abusivos fossem praticados. Inclusive, a contradição com relação ao próprio comportamento, em algumas situações, era particularmente vedada.
Azo de Bolonha (também conhecido Azo Soldanus) – 1150 – 1230 – jurista italiano natural de Bolonha e membro da escola de glosadores, com base em estudos que fez dos textos do direito romano, criou o brocardo – venire contra factum proprium – para designar que a ninguém é concedido vir contra o próprio ato.
A importância da vedação do abuso do direito na modalidade venire contra factum proprium fica evidente quando alguém, estando de boa-fé e com base em uma situação de confiança criada pela interpretação e aplicação de uma regra normativa, toma decisões ou organiza planos de vida e empresarial e posteriormente é surpreendido por interpretações contraditórias que violam a base daquela confiança originária, resultando-lhe danos patrimoniais e quebra da legítima relação de confiança com a insegurança jurídica criada.
O princípio da confiança é um princípio ético fundamental do qual a ordem jurídica em momento algum deve se distanciar.
A proibição do venire contra factum proprium recompõe e fortalece a doutrina da confiança, pressupondo, como elemento subjetivo, que o confiante aquiesça realmente ao elemento gerador de confiança e tenha segurança jurídica ao assim proceder.
No direito brasileiro, a Lei nº 13.655, de 2018, incluiu no Decreto-Lei nº 4.657, de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público.
Atualmente, no artigo 30 do Decreto-Lei nº 4.657, de 1942, encontramos o seguinte comando:
Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas.
Parágrafo único. Os instrumentos previstos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão.
O caráter vinculante dos instrumentos previstos neste artigo 30 é uma verdadeira proibição ao abuso do direito na modalidade venire contra factum proprium.
Especificamente sobre a produção e uso de insumos biológicos, a Nota Técnica nº2/2021/SEER/DIRPF/CGAA/DSV/DAS do Ministério da Agricultura e Pecuária, emitida no âmbito do Processo nº 21000.005189/2021-30, que é uma resposta do Ministério a uma consulta feita, contém o entendimento claro do Ministério da Agricultura e Pecuária sobre a interpretação e aplicação das normas vigentes.
Nota Técnica que até o momento não foi objeto de revisão nem foi contraposta por outro órgão de governo. (documento anexo) A Nota Técnica aborda a estrutura normativa construída nos últimos 20 anos e que dá respaldo à produção e uso de insumos biológicos, também conhecidos como bioinsumos, especialmente a produção de bioinsumos para uso próprio.
A estrutura normativa vigente está assentada na Lei nº 10.831/2003, que dispõe sobre a agricultura orgânica, seu decreto regulamentador, Decreto nº 6.913/2009, e outras normas técnicas.
Procurando dar maior efetividade ao conjunto de normas e compatibilizar os comandos da Lei nº 10.831, de 2003, com a Lei nº 7.802, de 1989, Lei dos Agrotóxicos, o Poder Executivo, por meio do Decreto nº 6.913, de 2009, modificou o Decreto nº 4.074, de 2002, que regulamenta a Lei de Agrotóxicos, nele inserindo diversos dispositivos, um deles o artigo 10-D e seu § 8º, que estabelece a isenção de registro para os produtos fitossanitários com uso aprovado para a agricultura orgânica produzidos exclusivamente para uso próprio.
Com esse comando o Poder Público habilitou o agricultor para produzir em sua propriedade, exclusivamente para uso próprio, os bioinsumos que pretender utilizar em sua atividade agrícola.
Importante ressaltar que o legislador, em nenhum momento, estabeleceu exclusividade de uso para a agricultura orgânica, o uso de insumos próprios do sistema orgânico nos sistemas convencionais de produção sempre foi absolutamente livre.
Trata-se de produtos com características desejáveis e seria um erro grosseiro o legislador impedir a universalização de seu uso.
Inclusive, para evitar qualquer interpretação oportunista e equivocada, o Poder Executivo, por meio do Decreto nº 10.833, de 2021, modificou o texto do § 8º, do artigo 10-D, do Decreto nº 4.074, de 2002, que hoje dispõe da seguinte forma:
“Ficam isentos de registro os produtos fitossanitários com uso aprovado para a agricultura orgânica produzidos exclusivamente para uso próprio em sistemas de produção orgânica ou convencional.”
O artigo 12-B, também incluído no Decreto nº 4.074, de 2002, prevê que o processo de registro de produtos fitossanitários com uso aprovado para a agricultura orgânica terá tramitação própria e prioritária. Estes comandos atendem ao que é estabelecido pela Lei nº 10.831, de 2003, especialmente em seu artigo 9º, que exige que o insumo com uso regulamentado para a agricultura orgânica deve ser objeto de processo de registro diferenciado, que garanta a simplificação e agilização de sua regularização.
Verifica-se, portanto, que a Lei nº 10.831, de 2003, criou um processo distinto de registro e uso para os insumos destinados à agricultura orgânica, excepcionando-os da regra geral contida na Lei dos Agrotóxicos, sem proibir o uso desses produtos em outros sistemas agrícolas e, inclusive, a produção deles para uso próprio.
Definitivamente a Lei nº 10.831, de 2003, e sua regulamentação, foi um verdadeiro divisor de águas, estabelecendo de forma clara e inequívoca a necessidade de diferenciar o tratamento entre os insumos biológicos e os químicos.
Importante aqui ressaltar que os Decretos nº 6.913, de 2009, e nº 10.833, de 2021, que modificaram o Decreto nº 4.074, de 2002, foram assinados pelo Presidente da República e seus respectivos Ministros das áreas da Saúde, Meio Ambiente e da Agricultura.
Cabe lembrar, que a assinatura do Presidente da República e dos ministros responsáveis pelas pastas que atuarão diretamente na execução da linha normativa que está sendo construída, não acontece sem antes o corpo técnico de cada ministério manifestar a respeito do tema, trabalho que é sempre coordenado pela Casa Civil da Presidência da República.
Não estamos, portanto, falando de uma estrutura normativa elaborada por curiosos. Ao contrário, trata-se de uma estrutura normativa que representa uma política de Estado, neste caso um fragmento da Política Agrícola do Brasil.
Entretanto, diante do que está vigendo, resta claro que os agricultores que estão produzindo em suas propriedades, exclusivamente para uso próprio, os produtos fitossanitários já aprovados para uso na agricultura orgânica, nada de ilegal estão fazendo.
Ao contrário, estão atuando exatamente em conformidade com as regras estabelecidas pelo Poder Público e, inclusive, com o entendimento do Ministério da Agricultura consolidado na Nota Técnica acima citada.
A principal limitação que a regulamentação estabelece é que essa produção deve ser exclusiva para uso próprio. Aquele agricultor que produzir produto fitossanitário em sua propriedade e vender esse produto sem antes o registar conforme exigido pelo regulamento, cometerá uma ilegalidade cuja consequência é estabelecida no artigo 6º da própria Lei nº 10.831, de 2003.
Desta forma, diante da estrutura normativa vigente, e da interpretação consolidada do Ministério da Agricultura e Pecuária registrada na Nota Técnica nº 2/2021, que tem caráter vinculante para o Ministério da Agricultura, a Associação Brasileira de Bioinsumos – ABBINS observa que os agricultores que estão produzindo bioinsumos para uso próprio estão absolutamente dentro da legalidade.
Importante ainda ressaltar que além da absoluta legalidade, os agricultores estão produzindo seus bioinsumos com total segurança (nenhum incidente ou acidente foi registrado no Brasil nas últimas décadas) e realizando o maior programa de redução de uso de agrotóxicos nas lavouras brasileira.
Sendo lícita a produção de bioinsumos para uso próprio, legal também é a atividade de empresas que fornecem, conforme a legislação vigente, inóculos para a produção de bioinsumos para uso próprio.
Brasília, 13 de julho de 2023
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